quinta-feira, 14 de março de 2019

Aquilo que a gente guarda



É quando a gente se muda
que vira e mexe as coisas
que a gente vê quanto se guarda
e o quanto custa carregá-las

Eu sempre com mainha brigava
ao arrumar suas coisas,
o tanto de coisa
que mainha guardava

Era roupa sem uso,
sapato sem dono,
elástico folozado,
tiras e mais tiras de pano,
contas de mil novecentos e me esqueci,
receitas médicas vencidas,
caixas de remédio pra não se esquecer do nome
santinhos de vereador
papel de pão embolado
e talvez, no meio, alguma arte minha
que nem me lembrava

A briga era para saber o que jogar fora
Porque ai...
“Uma hora precisa”,
“Quem guarda tem”
Do que eu separava,
metade ela guardava
alegando a serventia
Com o tempo e a idade
foi se desapegando,
vendo que não daria conta
de tanta lataria

Eu me pego arrumando a casa,
mais uma mudança
O peso maior do que nunca
e me questiono o que tanto custo a carregar

Fora as plantas, instrumentos e móveis necessários,
O que mais carrego?

As milhões de quinquilharias achadas no lixo
que “uma hora serve” para um vaso de planta,
um artesanato, um sei lá o quê....
“Mas não se deixa uma coisa dessas no lixo”.

Fora, o que nem tanto pesa,
mas é uma memória material,
é um cartaz de uma mostra cinematográfica,
um crachá de evento,
um canhoto de um ingresso de tal artista
que olhando assim bem de perto,
passado os anos, nem sei porque quero e guardo
sem muito uso, me desapego

vejo mainha em mim
e vejo o quanto a gente guarda

E o quanto a gente guarda que não é material?
O quanto tá guardado em memória?
De sentimentos presos, inúteis, que só nos deixam pesados
e dificultam nossas mudanças

Guardamos os medos de quando criança
A raiva dos desejos repreendidos na adolescência
As diversas frustações de adultos
Os tapas da vida
Os rumos incertos
A ânsia da morte

Eu quero arrumar minha casa
e dar utilidade as coisas.
Guardar o que for bom
e me desfazer daquilo que hoje não faz nenhum sentido

Ver que o perdão (não a tolice)
A aceitação (não a passividade)
O desapego (não o abandono)
Tem real sentido na faxina interna

Pra caminharmos mais leves,
Mesmo sabendo que adiante
Trombaremos no caminho com mais coisas
Que talvez ache interessante levar pra casa

Que Talvez faça algum uso
Ou talvez descanse um pouco
E daqui a um tempo
Volte a sua própria circularidade.


quarta-feira, 13 de março de 2019

Verossimilhança ou pura coincidência?



Poesia é abstração
Pode ser de hoje
Pode ser do amanhã
De ontem, pode ser de agora...

Pode ser sentimento meu
Pode ser teu
Do mundo
Ou pode ser de ninguém

Poesia é palavra solta
Que ninguém prende
Nem apreende por completo seu sentido
Nem o próprio contador

Que finge tão completamente
Como diz Pessoa
“Que chega a fingir que é dor
a dor que deveras sente”.

Liquidez


Perto de ti sou água
Me faz lembrar do mar
Das influências da lua
No nosso corpo mar feminino

Sou rio que corre calmo
Que sorri com tua presença
Sou chuva miudinha sem desmantelo
Sou tanque cheio depois de trovoada

Sou poço fundo,
fonte que não seca
Oceano vasto
que inunda areia deserta

Sou água que corre solta
envolta no teu manto sagrado,
que me enlaça, que me abraça,
que me faz querer estar do teu lado

Se derrama em mim sem pressa,
pra que esse líquido que se dispersa
em cachoeiras
possam desaguar.

quinta-feira, 7 de março de 2019

Escritos de quarta-feira de cinzas



O que é o carnaval
 se não essa necessidade carnal
 de viver intensamente o aqui e agora?
É voltar a ser criança, é brincar.

A rua é tomada pelos mascarados,
pela pouca roupa e pouca vergonha de quem é impedido de se despir
e impelido a se vestir numa moral barroca
que sua ausência significa violência contra mulheres, gays e travestis

Encontro de corpos numa sintonia ondulante,
numa cadência que nos faz entender a física quântica
E o que bate, seja lá onde for, é a percussão 
do samba, coco, maracatu, afoxé, funk, frevo ou pagodão

São heranças de nações africanas que pra aqui foram sequestradas
Que resistiram e resinificaram seus tambores,
nas dores e nas alegrias,
na expressão espiritual do corpo carnal como nas liturgias

Onde a Igreja oficial condena,
pune o corpo enquanto pena e a todos enrijece,
o tambor com maestria mostra que corpo e espiritualidade
estão na realidade numa mesma sintonia

E dizem que carnaval é invenção de branco
Apois, só lá dentro do salão
Como muita pomba e ostentação
Como nos camarotes e festas fechadas de hoje em dia.

O preto fez sua festa na rua,
espaço condenado pela moralidade da burguesia,
destinados aos chamados “vadios”
que seriam esses os autônomos, ambulantes de até hoje em dia?

Que estão nos carnavais
mostrando as desigualdades raciais do nosso país,
assim como as cordas que separam o trio elétricos das multidões,
definindo desse jeito de cada lado as cores e tons.

Mesmo andando na contra mão da moralidade,
muita masculinidade se apropria do espaço de “liberdade”
para invadir o que não lhe é de direito,
um beijo forçado, mão que agarra, pau que roça...

Mesmo com toda contradição,
sendo um micro cosmos de nossa realidade
Como não amar essa festividade?
E desejar que nunca acabe

Que seja público e das ruas
E que todxs possam aproveitar curtindo, fazendo suas correrias
E se lembrando o ano inteiro que no mês de fevereiro
Nos espera com mais folia.